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A Paternidade Se Lança Ao Abismo


Este texto terá a duração determinada pela imprevisível vontade de Otto, nosso filho. Será, portanto um texto imprevisível sobre o imprevisível. Se pegarmos a etimologia da palavra infância, percebemos que ela toma como referência para sua nomeação, não a condição biologicamente prematura da criança em relação ao adulto, como talvez pensássemos num primeiro momento, mas põe a aquisição da “palavra” como grande conquista do humano e da qual esse referido ser ainda não tomou “posse”, sendo portanto não simplesmente um “ser novo”, “um ser pequeno”, mas mais do que isso, um “ser ainda incapaz de falar”. Se, então, é pela palavra, pelo ato de nomear e de atribuir predicados às coisas, aos fenômenos, aos acontecimentos e especialmente aos “outros” que o ser humano tece sua aparente segurança diante dos mistérios da vida, nós ocidentais parecemos ter elevado essa obsessão de determinação e de controle a um nível exagerado, vivendo portanto uma espécie de “mal-estar”, de angustia, de ansiedade, dado que o “mundo” nem sempre aparenta tanta aderência ao “nome” que insistirmos dar a ele.

A expressão “isto é” poderia sintetizar essa ânsia. Sugiro neste texto, então, que a paternidade ocidental é a experiência radical de pôr em choque dois seres radicalmente antagônicos: de um lado um “projetado” para, por excelência, ser um “nomeador”, aquele que seguramente define as coisas e determina o outro – O PAI ADULTO –, e diante dele um “OUTRO” que, justamente por “ainda ser incapaz da fala”, não oferece a este pai nenhum sinal seguro de resposta adequada aos predicados que lança sobre ele. Ele não parece dizer “Sim, senhor!”. Por mais que escrevamos seu nome em todo o quarto, estampemos suas roupinhas, o seu olhar eloquentemente mudo, prolixo justamente porque sem língua definida, parece conter um “a mais”. Digamos que Otto ao me olhar em silêncio ou em choro, joga em mim um infinito de significantes que faz do nome “Otto” um “indeterminado”, uma espécie de “Otto e +”. O preço disso? O pai está diante de um ser que, sem nada dizer é ensurdecedor, performatiza para ele ininterruptamente a falência de suas pretensões de controle; é uma mirada, uma encarada análoga a olhar o abismo, uma vertigem que te impulsiona ao pulo, à queda livre sem equipamentos de segurança em um fundo sem fundo. E isso para quem foi projetado para, a duras custas, aparentar frieza, solidez, previsibilidade, exige desse pai ou a fuga covarde, o abandono, ou a dilaceração radical dos emblemas que pesadamente precisamos expor na adequação à palavra “HOMEM”. Em todo caso, dado que roupas por muito tempo usadas deixam marcas, esse “ou” pode ser mais realisticamente um “e”. Por vezes, e agora falo em primeira pessoa, fugimos, por vezes nos dilaceramos, por vezes ensaiamos uma descida pelo abismo.

Mesmo nos furtando à queda livre, vamos descendo cuidadosamente o despenhadeiro sem nunca ver seu fim. Bom, e nessa descida estamos acompanhados também de um outro ser que mesmo já “capaz da fala”, parece mais rapidamente perceber que quando não há ditos preestabelecidos prostrados como guardiães mantenedores daquilo que acreditamos ser, é que mais acessamos nosso íntimo – a MULHER MÃE –, que também passa, mais do que antes, a te olhar com os olhos despidos de palavras, esquivados de significados imediatos. Outro abismo, que no fundo é o mesmo, porém ela te olha já em queda dado que foi “empurrada”. A MÃE, então, pode até desejar sua mão, não para ter a segurança de voltar ao topo, mas para que a descida seja povoada. Por aqui somos três descendo, não vemos o chão, não vemos mais de onde viemos e quando olhamos um para o outro temos a impressão de amar um misterioso conhecido.

Gustavo Coelho

Pai do Otto, esposo da Débora Rocha, Mulher Viva

Professor Adjunto da Faculdade de Educação da UERJ. Doutor em Educação (UERJ) com estágio sanduíche na Université Paris V / Sorbonne. Autor do livro “Deixa Os Garotos Brincar” (Editora Multifico). Diretor do documentário “Luz, Câmera, PICHAÇÃO” (Menção Honrosa – Prêmio Manuel Diegues Jr. – CNFCP 2011 / Premiére Brasil - Festival do Rio 2011).

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