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Memória inventada de um nascimento

(Por uma gestante que nasceu de cesárea eletiva)

Já não me lembro de quando era escuro, quente e úmido. Nem quando durmo – luzes apagadas, corpo sob o lençol, saliva dentro da boca – sou capaz de me aproximar daquela sensação que vivi durante 9 meses, mas nunca enquanto minha. Lembrança impossível, condição tão real.

Também me é vedada a imagem da primeira cena aqui fora. Isso mesmo, nunca houve garantias de que esse momento, o da cena inaugural tal qual a descreverei, de fato aconteceu. A história que carrego comigo é a soma do relato de minha mãe e das memórias por mim inventadas. Escrevo-os:

Continue de olhos fechados, eu posso ter dito a mim mesma. Continue de olhos fechados, que assim é melhor. Não se importe com o ar gélido, a claridade fria, finja que dorme – o marrom escuro e grudento dos olhos cerrados é mais nuançado.

Permaneça viva e finja que dorme, mesmo um bocado acordada. Mas é claro que não me deixaram. Estavam lá para garantir que eu experimentaria, mesmo que sem muita clareza: contornos, quase-formas recortadas do opaco coladas no visível.

Para que comprovassem que eu veria o mundo, ali representado pela sala gelada e metálica e por alguns corpos humanos, me deram um tapa. Ao qual não reagi. Quem nunca fingiu que dormia? E eu faria isso tantas outras vezes ao longo desses 40 anos.

Eu que invento a cena que protagonizei e não vivi, aqui me resta falar em primeira pessoa tentando ser impessoal, embora íntima. Não posso deixar de mencionar que o silêncio que se sucedeu ao tapa foi seguido por outro tapa. Só então não pude mais evitar o que me cercava: uma luz ofuscante, triunfal. Eu não via nada, e então comecei a chorar. Minha mãe disse que sentiu um alívio enorme ao me ouvir. Mas e eu? É como se o mundo não tivesse esperado que eu o desejasse, como se toda aquela cena tivesse sido escrita não para mim, mas apesar de.

Agora me preparo para meu primeiro parto. Nascerá minha filha, oxalá por via vaginal, à hora que ela desejar. São quatro décadas entre o nascimento dela e o meu. Quatro décadas e a oportunidade de reescrever uma história aceitando o que se passou e desejando uma experiência bem distinta.

No parto da Madalena vou buscar alguma coisa que ainda não sei nomear, mas da qual já não posso abrir mão.

Natalie Lima

Mulher Viva e mãe da Madalena. Doutora em Letras pela PUC-Rio, foi bolsista-sanduíche na Universidade Paris VII. É mestre em Letras também pela PUC-Rio e bacharel em Comunicação Social (UFRJ). É autora de "Jacuzzi" (2017), ficção publicada pelo selo MegaMíni. Participou da exposição "Cadernos do Corpo" (2016), com curadoria de Ana Kiffer, e publicou textos de ficção e não-ficção nas revistas Garupa, Outra Travessia e Antares.

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